Conto: O Coração do Sol

Sunset in Mid Ocean - Thomas Moran

É meu povo, hoje não vai ter piada pronta. Dessa vez, o Cérebro Voltaiko trará um post para lá de incomum... Trata-se de um conto meu que achei em um pen-drive de Backup, mas que eu gostei tanto que decidi compartilhar com vocês. Eu estava em um momento "escritor de contos amador" e pensei que um monte deles deveriam ser colocados aqui, já que provavelmente, eu nunca vou publicá-los mesmo... Se a repercussão for boa, eu coloco os outros (menos os eróticos, por que aí já é demais....). Ah, este não é um post casual, se decidir ler, reserve um tempinho, por que é mais longo que de costume. Como vocês sabem, a temática é óbvia e vai ter muita coisa que o povo certamente torcerá o nariz, mas tente relevar... Depois comenta o que achou e compartilha aí...

Então é isso, Solta o som e espero que gostem.




***

O Coração do Sol

Bang!

Mais do que a surpresa de estar ali, o que mais o incomodava era a sensação de que não podia explicar aquilo.

Estava ajoelhado, cabeça abaixada, e a única coisa que via era o chão sob seus joelhos dobrados. O chão, era de vidro, mas cheio de cores como cristal. Então percebeu, em uma fração de segundos, que era diamante.

Também em uma fração de segundos ele se deu conta de onde estava.

Com um medo terrível e uma peso confuso no coração, fechou os olhos e sem coragem se levantou. Ao abrir os olhos, ele Viu um campo sem fim. Olhou para o chão e o piso de diamante havia desaparecido, dando lugar á grama pisada.

Conhecia aquele cheiro, conhecia aquele lugar, era a fazenda do interior de onde viera sua mãe. Era impossível não reconhecer aquele lugar que lhe trouxera tanta alegria na vida. Lembrou-se dos tempos de férias na fazenda: Requeijão, pão-de-queijo, leite fresco, pipas, patos.

Já fazia tanto tempo... Anos, séculos...

De repente um vento muito forte soprou pelo vale. Mas, ele não sentiu o vento, embora pudesse ver o capim selvagem se agitando e a copa das árvores de manga se agitarem ao longe.

Não havia ninguém lá. Nem mesmo os animais, nem mesmo a lembrança de como ele viera parar ali. A última lembrança que tinha era... Não conseguia se lembrar, por que distraiu-se com uma ave gigantesca no céu.

E estava chovendo.

Os carros passavam agitados pela rua, o frio doía os ossos das pessoas no ponto de ônibus que se espremiam para não se molharem, apesar de se verem frustrados com a tentativa, pois mesmo sob o parco abrigo, seus ossos doíam de frio e a chuva forte colava nos ossos. Ele olhou com pena para um casal.

A mulher estava grávida e provavelmente já havia rompido a bolsa. De repente, ele viu algo que não havia percebido antes, algo que sempre estava lá, mas ele não o tinha notado.

Um Homem.

Ele sabia o que estava vendo, não era um homem, mas a sua compreensão, só poderia assimilar aquilo como um Homem.

Lá estava ele, de costas para o casal, como se os protegesse de algo.

Ele se perguntou, "Do que estava ele os protegendo"?

Em um segundo, um bater de asas de borboleta, uma piscada. Ele viu um carro vir desgovernado, derrapar na chuva, subir na calçada e acabar com o sonho do casal. Viu o teto do abrigo do ônibus se romper, viu milhares de situações mortíferas, mas no mesmo segundo derradeiro, viu as mesmas situações em que  no lugar do casal, o homem sofria todos os acidentes.

Aquilo era loucura, talvez estivesse drogado, ou estivesse alucinando. Não poderia ter se transportado de um lugar para outro em tão pouco tempo.

Ia mexer nos óculos - Tique que ele sempre fazia quando estava nervoso - E percebeu que o seu companheiro de nervosismo, não estava lá. Esfregou os olhos e surgiu diante de um portão vermelho. Era o portão da sua primeira casa.

Ele já não se perguntava mais o que aquela situação era, não se entregou ao desespero. E mesmo com esforço, não conseguiu nem mesmo induzir um, diante do absurdo da situação, como era de se esperar de alguém normal. Ele percebeu que simplesmente não sentia mais nada. Nem desespero, nem confusão, nada.

Nada, não, sentiu saudades.

Olhou pela grade, havia um buraco no chão onde jogava bolinha de gude com o pai. A cesta de basquete ainda estava lá? Como era possível? Lembrou-se de quantas vezes, brincava até tarde com o pai e depois, cansado, o pai entrava e ele ficava vendo o sol se pôr, pensando em nada de útil, ficava vendo as estrelas do seu bairro de subúrbio. Ou brincando com as outras crianças do bairro.

Pelo canto do olho ele viu O Homem.

E ao redor dele, milhares de sombras, se movendo como gravações velhas, fazendo barulhos estranhos. Gemidos, sussurros de dor...

"Certamente estou drogado" pensou consigo mesmo.

Você, leitor esperto, já sabe a sina do nosso rapaz, mas imagine-se em sua situação. Você agiria diferente? Certamente tentaria falar com alguém.

Ele também.

Então ele caminhou até a única pessoa que viu - e que não era terrivelmente assustadora. Ao chegar perto dela, parou subitamente paralisado de medo, era a primeira garota que ele achou bonita na vida.

E não era só isso. O corredor da escola estava apinhado de gente. Ele olhou ao redor e ficou petrificado, mesmo sendo uma alucinação, era uma das mais terríveis...

O uniforme velho contra os uniformes de luxo do colégio particular, a solidão, contra a popularidade dos garotos mais velhos, mais inteligentes, mais bonitos.

Mas a escola não parecia mais tão assustadora. Andou pelo pátio, lembrou se dos amigos, os poucos que ele teve, lembrou-se do período de férias onde ficara de recuperação em matemática, e perambulou com eles pelos lugares escondidos da escola, a parte de trás do teatro, as obras cheias de ferro dos fundos, era a sua Ilha do Tesouro.

Lembrou-se de como era ruim sentar-se sozinho pelos cantos da escola e como desejava com toda a potência do coração poder ser outra pessoa.

Alguém passou por ele.

Era seu melhor amigo.

Foi o amigo que caminhou com ele pela vida toda. Muitos se foram, morreram, brigaram, mas ele permaneceu. Mas, cônscio de sua alucinação, não conversou com o amigo.

A alucinação estava ficando pior. Já estava sentindo se bêbado...

Como no tempo da faculdade.

Cabelo grande, tatuagem, bebidas, cigarro, baladas... Era o espírito da noite, o vento sem fim, a liberdade vencendo tudo. A vida era uma promessa enorme. O coração cheio de música, a alma forte como um castelo, o sentimento de ser jovem e imortal.

Como quando - muito bêbado - Se equilibrava em uma varanda no alto de um prédio. Ou andava bêbado pela madrugada, fumando na garoa, cigarro molhado, mochila nas costas. O sol estava nascendo diante de seus olhos.

O amor, as mulheres, o sexo, a aventura rumo ao desconhecido. A maciez da pele alheia, o perfume dos cabelos, o gosto, os sons...

A primeira vez que saíra de um motel.

Contudo, sempre sentia a presença do Homem por perto, o mesmo Homem sempre... Não sabia se ele estava vigiando ou preparando se para atacá-lo. Mas, por mais estranho que fosse para sua mente, simplesmente não conseguia ter medo. Ainda que estivesse preocupado.

Aliás, onde estaria sua mulher naquele momento? Estaria bem?

A mulher, a praia, o noivado, o casamento, a festa...
Bem como as brigas, os anos de dificuldade, a fome, a solidão. Os períodos mais duros do casamento para ele, não passavam de lembranças. Ele estava começando a sentir raiva. Lembrou-se de como era terrível ter uma vida oprimida pela pobreza. Morando na periferia, sofrendo humilhações do patrão, ouvindo xingamentos, zombarias, exposto ao sol, á chuva, á uma vida de tristeza.

Era a vida adulta com todos os seus dissabores.

"Eu era feliz e não sabia" pensou consigo.

Mas na verdade sempre fora feliz E infeliz, mas ao olhar para o passado, esquecera de todo o mal que já havia lhe acontecido, guardando apenas as boas lembranças e enganando-se a si mesmo em uma falsa esperança.

Aguentava tudo isso por causa dos filhos...

O primeiro filho.

As muitas dificuldades do primeiro filho se apagaram quando a filha sorriu e disse:
"eu te amo papai".

No hospital, lá no fundo do quarto o homem estava lá.

Onde estavam seus filhos e sua mulher?

Viu a si mesmo, egoísta, tratando mal aos seus colegas de trabalho, sendo injusto, sendo tudo o que sempre odiou, por que se tornara alguém amargo, velho de coração, egoísta, fútil.

Tinha um carro.

Tinha muita chuva. E foi nesse dia que ele atropelou uma pessoa. Virou a esquina e quando ela se levantou, ainda ficou espiando pra ver se estava bem, deu a partida e se foi sem nenhum peso na consciência.

Continuava pobre, mas agora, também de espírito. Há muito não ia mais a igreja como sempre fora. Passava diante da igreja, sentia vontade de ir, mas por costume, não mais por aquele desejo ardente que antes havia no coração.

Não rezava em casa, nem mesmo consigo mesmo quando deitava-se para dormir. Como fizera por tantos anos de sua vida.

Da janela do quarto, podia ver o Homem, como o Fantasma do Natal Passado, mostrando sua vida pregressa com tristeza...

Conversava bastante com a filha mais velha. Era igual ao pai, seu maior orgulho. Seu legado. Saiam para beber ás vezes e ele contava suas histórias da juventude como um sobrevivente de guerra. Numa dessas noites. Um assalto ocorria ao lado do bar. O garçom, novo como ele já fora um dia, crente na imortalidade, tenta revidar. o assaltante atira e a bala não atinge o rapaz.

O Homem estava lá na hora, o tiro atravessa seu peito e atinge um senhor que estava saíndo do bar com sua filha.

Bang!


*** 


 - Eu estou...

- Está. - Diz O Homem.

- Então é verdade que vemos um filme da nossa vida antes. - pergunta ele sem surpresa.

- Mais ou menos...

- Cacete...

De súbito ele percebe o que falou.

- Não importa, nunca importou mesmo, não vai ser agora que fará diferença...

- E agora?

Antes que ele pudesse pensar, sentiu se preso em um vórtice de lembranças, ele era tudo, cada formiga no café, cada folha de árvore, cada estrela, cada gota no Oceano, toda a criação que se repetia todo dia e que ele nunca se deu conta, de um sol majestoso, até á chuva que alimentava as plantas e o ar que respirava e mantinha sua saúde. O Homem, antes imperceptível, tornou-se visível. Como se acabasse de aprender algo novo e impossível, como se pudesse ler mentes, como voar...

- Então é assim que você é!

Sem perceber estava na presença de Deus.

Então, sentindo o impacto fulminante da sua miséria impotente, ajoelhou-se diante Do Criador. E O Criador se abaixou e o abraçou.

As lágrimas mais pesadas de sua vida caíram naquele momento. O abraço de Deus o envolveu e ele viu tudo com clareza. Tudo o que ele nunca viu com sua cegueira. No campo, ele não estava só, ele estava com a mãe comendo biscoito de polvilho e a mãe cantou para ele. O som da canção, a voz da sua mãe, apertou seu coração.

No dia do seu nascimento, sua mãe quase morria.

- Meu Deus, meu Senhor, cuida do seu filho, não deixe meu filho morrer por favor.

Seu pai brincando de bola de gude no quintal pensava "Deus, permita que meu filho seja feliz, eu dou minha vida pela dele se for preciso" O pai sorria quando o filho fingia estar ganhando, orgulhoso do maior presente da sua vida. A cada aniversário, chorando sozinho por que o filho estava vivo e com saúde.

Seu coração parecia querer explodir. Suas lágrimas dançavam no ar como se explodissem.

Sozinho no quintal, no escuro, ele nunca veria os anjos armados com espadas de fogo queimando os demônios que ameaçavam destruir sua vida. Legiões de anjos protegiam sua casa diariamente. Anjos arqueiros varavam serpentes e assaltantes durante a noite. Um campo de batalha se estendia ao seu redor para garantir sua vida como se ele fosse o único ser vivo do planeta.

Sozinho na escola, O Homem sentava se com ele.

"Eu queria ter amigos, mas quem gostará de mim?"

"Não se importe com isso, dia virá, que isso não existirá a não ser como uma lembrança, por que você não lê um livro hoje?" - Dizia O Homem 

Ele ria consigo mesmo...

"É verdade... Um dia eu vou rir disso! - disse consigo mesmo - Bom, vou ver se tem algo bom para ler na biblioteca".

Ele não suportava tanto, caiu no chão em prantos, mas seus olhos não conseguiam se fechar.

O Homem, andava ao seu lado protegendo-o do tétano dos ferros, de perfuração, de quedas, de centenas de perigos...

Estava com ele quando estava bêbado. Conversava com ele quando ele sentava-se sozinho a noite. Quando estava furioso do trabalho. Quando estava com a esposa.

"Eu te amo meu amor" - dizia ela

E então sim, em segundos, ele viu sua vida passar diante dos seus olhos novamente. Vendo todas as vezes em que Deus estava ao seu lado, como no conto das pegadas na areia, e que ele achou se sozinho. Todos os dias de revolta, de fome, de sofrimento, de perda, de desencontro, de desespero, de alegrias, de amores, de aventuras, de noites gloriosas, manhãs esplendorosas e tardes tranquilas, até ás noites de terror e desilusão. Do seu primeiro choro até seu ultimo suspiro.

Sua filha, segurando sua mão enquanto ele morria.

"Eu te amo papai"

- O que eu fiz para ser diferente? Por que eu mereço tanto amor? E os outros? - Perguntou ele.

- Cada um tem a sua história, e a cada um cabe conhecê-la.

Sem que nem pra que, seu corpo começou a incendiar-se. Suas mãos, seus olhos, sua boca.  O fogo queimava em um desespero sem fim.

Não sentia mais Deus perto dele. Depois de senti-lo, poderia saber a que distância ele estava. E a distância era infinita, como da terra ao sol.

Ele gritava, chorava em desespero. Não era mais de dor pelo fogo, mas sim de tristeza. Uma angústia profunda, uma saudade esmagadora que apertava tão forte seu coração que ele simplesmente não conseguia suportar, era como se fosse explodir de dor e de tristeza.

Pensou se estaria no inferno. Havia cometido muitos erros enquanto vivo. E nada mais lógico que ir para lá. Então gritou desesperado, em um desespero sem fim que só poderia ser comparado ao seu primeiro choro.

E na verdade assim o era.

Era o choro do seu segundo nascimento.

Gritou como se fosse a primeira vez que gritara na vida e seu grito se transformou em uma canção. Gritou alto, gritou como que por séculos enquanto queimava. Então quando não conseguia mais segurar seu coração, percebeu que não deveria mais se conter e sim deixar-se explodir.

Então explodiu. Estava no coração de um sol. Olhou para tudo ao redor. Poderosamente, todas as coisas em chamas, vales de labaredas enormes e montanhas de fogo. Mas ele não sentia dor. Só alegria.

E amor.

Não chorava mais, ele era a lágrima.

Ele caminhou pelo sol, como quando caminhava pela terra.

Ele olhou as estrelas e viu que tudo aquilo, não era nada diante de tudo o que ele ainda ia viver. Lá, no meio do fogo, estava sua família.

"Eu te amo meu amor"
"Eu te amo papai"


E o fogo os iluminava como estrelas no céu.

Ele os abraçou como jamais seria possível na terra.

- Onde está Deus? - Forma suas primeiras palavras.

Ao que responderam:

- Ele está no meio de nós.

Eles, do coração do sol, olharam para o universo e voaram como tochas lançadas em direção á Deus. Cruzaram Estrelas, Universos, Sóis e Galáxias.

Cruzaram os Portais do Infinito, Átomos, Tempo, Espaço, matéria... Como navegantes, até cruzarem o fim de tudo o que se quer é conhecido e tudo que já foi criado em direção ao coração de Deus. Em direção ao portão do Paraíso.

Cruzaram os portões para dentro da Luz mais poderosa de toda a criação. E a Luz os recebeu. Onde seriam verdadeiramente livres e amados.

Para sempre.




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